"Quando há queda nas taxas de imunização você vai criando um grupo de pessoas suscetíveis. Esse grupo vai crescendo ao longo do tempo, até chegar ao ponto em que a importação de um único caso gera uma epidemia", explica Expedito Luna, médico e professor de epidemiologia do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
"Nós sabemos que é muito difícil atingir a totalidade de 100% das crianças vacinadas. Mas ao chegar próximo a esse nível, a chance de epidemia é muito pequena, mesmo na presença de um agente infeccioso", diz.
De acordo com Carla Domingues, há diversos fatores que podem estar por trás dos números em queda e um deles pode ser a recusa, que tem aumentado nos últimos anos, de pais em vacinar seus filhos. "Os dados de 2016 mostram menor cobertura vacinal para a poliomielite. Pode ser por fatores sazonais, mas a resistência das pessoas é algo que está nos chamando a atenção," diz.
Com mais vacinas disponíveis, algumas famílias optam por quais aplicar em seus filhos. Outras preferem evitar a vacinação das crianças, por julgá-las saudáveis. Há ainda os que preferem evitar que os filhos sejam vacinados por razões religiosas, ou os que temem reações adversas - na Grã-Bretanha, por exemplo, houve um intenso debate no final dos anos 90 quando um médico sugeriu, em um estudo, uma ligação entre a vacina tríplice viral e casos de autismo.
Essa decisão individual - de vacinar os filhos ou não - acaba impactando o número de pessoas protegidas contra doenças transmissíveis, mas preveníveis, e criando grupos suscetíveis.
Grupos antivacina são tão antigos quanto os programas de imunização, iniciados no século 19, quando reações adversas eram mais frequentes. No Brasil, especialistas acreditam que os grupos são menos expressivos que na Europa e nos Estados Unidos, mas notam que há relatos cada vez mais frequentes de pais que optam por não vacinar seus filhos, principalmente entre os mais ricos. Essa decisão explica porque esse grupo tem as menores taxas de cobertura vacinal, juntamente com os mais pobres, mas por razões distintas.
"Pessoas de estratos econômicos mais elevados, alimentadas por informações não científicas, acabam selecionando quais vacinas querem tomar e alguns até abdicam de tomar todas. Por outro lado, você tem dificuldade nos grupos mais pobres, uma dificuldade de acesso aos serviços de saúde", afirma José Cassio de Moraes, professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, que publicou em 2007 um estudo comparando as taxas de cobertura entre as duas populações.
Para impulsionar a imunização e atingir as metas da OMS, o governo tem trabalhado nas escolas, em parceria com o Ministério da Saúde, para atingir crianças e jovens e lembrar as famílias sobre a importância de evitar o retorno de doenças antigas.
"A minha filha não viu amigos com poliomielite. Mas, na minha época, a primeira fileira na sala de aula era deixada para alunos com pólio", relembra a coordenadora do PNI. "A minha geração tinha pânico de ser contaminada, já hoje as pessoas não veem a doença e ficam mais relaxadas. Mas as crianças hoje são saudáveis porque seus avós e pais foram vacinados no passado", afirma.
"O mecanismo que faz com que vacina seja importante é a prevenção - ela não é curativa, ela é preventiva. Ela é dada no paciente saudável, para que possa criar anticorpos que o permitam responder à doença se houver contato com a bactéria ou vírus. A resposta não deve ser apenas quando há doença circulando, mas de maneira preventiva", ressalta.
Desabastecimento e recursos escassos
Além do fator comportamental, problemas com o abastecimento de vacinas essenciais e municípios com menos dinheiro para gerir os programas de imunização também são apontados como fatores importantes.
Desde 2015, o país registra o desabastecimento de diversas vacinas. Do início de 2016 até junho desse ano, houve acesso limitado à vacina pentavalente acelular, que protege contra difteria, tétano, coqueluche, meningite provocada pela bactéria Haemophilus influenzae tipo b e poliomielite. Também houve dificuldades com a BCG, que protege contra a tuberculose e é a primeira vacina dada ao recém-nascido.
Em julho, o Ministério da Saúde afirmou que a oferta da pentavalente havia sido regularizada, mas classificou como "crítico" o abastecimento das vacinas tríplice viral, tríplice bacteriana acelular infantil (DTPa) e rotavírus, todas parte do calendário de vacinação nacional. Para a DTPa, a previsão é que o abastecimento seja regularizado neste segundo semestre, enquanto as demais seguem sem expectativa de normalização.
Para Luna, a falta de vacinas nos postos de saúde, mesmo por alguns dias, pode afetar a cobertura. "A mãe pode não voltar," diz. Já a escassez de recursos nos municípios, responsáveis pelos programas de vacinação, diminuiu horários disponíveis para vacinação e reduziu o número salas em que o serviço é feito, o que impacta na cobertura.
"Sabemos que há municípios que tinham várias salas de vacina e concentraram em apenas uma. Será que isso piorou o acesso da população? Será que há profissionais o suficiente para vacinar, para evitar filas? Precisamos ver se não estamos burocratizando o processo de vacinação, o que dificulta o acesso," afirma Moraes.
Ele defende um estudo profundo do Ministério da Saúde para compreender a queda nos índices de imunização e evitar que o país retroceda nesse quesito e enfrente consequências graves. A Europa é um exemplo dessas eventuais consequências. Apesar do alto nível socioeconômico, um surto de sarampo já infectou 14 mil pessoas neste ano, e a doença é considerada endêmica em 14 países da região, incluindo Alemanha, França e Romênia. Só nesse último, foram 31 mortes desde 2016. As taxas em queda de vacinação são um dos principais fatores para o surto.
"Há um fluxo de pessoas que visitam a Europa que podem retornar e trazer o sarampo de volta ao Brasil. Se encontrar um bolsão de pessoas suscetíveis aqui, pode haver uma epidemia, essa é uma doença altamente contagiosa", alerta Moraes. "Não podemos perder nossas conquistas e essas são muito fáceis de perder. Progredir e manter o progresso é que é difícil."