Nem a crise econômica atual reduziu a tendência do mercado brasileiro de alimentos industrializados à “gourmetização” – o lançamento de versões mais luxuosas e caras de produtos tradicionais, oferecidas ao consumidor como uma forma simbólica de marcar diferenças sociais. Esta é a opinião do pesquisador Valter Palmieri Júnior, que estudou a fundo o tema para sua tese de doutorado “A gourmetização em uma sociedade desigual: notas sobre a diferenciação do consumo de alimentos industrializados no Brasil”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
Valter Palmieri Júnior, autor da tese: “A gourmetização ganhou impulso a partir de 2003”.
“Gourmetização é uma prática que visa rebuscar, dar um luxo, uma diferenciação maior, a um mesmo produto. O que é feito para marcar uma diferenciação de posição social, que pode ser tanto no seu sentido estrito – trata-se mesmo de um produto mais sofisticado, que apenas quem tem um gosto mais refinado vai conseguir apreciar – mas não só”, diz ele.
O pesquisador explica a ressalva: “A grande indústria brasileira de alimentos tem a marca de produzir produtos de baixa qualidade: há um excesso de açúcar em vários doces industrializados, por exemplo, porque açúcar é um insumo barato. Aí você melhora um pouco só o produto, põe um pouquinho mais de cacau no chocolate, mas trata isso como se fosse um produto muitíssimo superior. E coloca um preço três vezes maior. A diferença de preço supera bastante a diferença de custo”.
Palmieri afirma que, com os processos industriais da atualidade, produzir tornou-se muito mais fácil do que vender: “A arma de concorrência passa a ser como seduzir, como fazer com que as pessoas descartem o outro e comprem o meu, ou descartem o antigo e comprem o novo. A publicidade e o marketing ganham crescente importância devido a essas mudanças no capitalismo contemporâneo, caracterizado pela penetração mais intensa da lógica do capital na esfera cultural.”
A tendência do mercado brasileiro de alimentos industrializados para a gourmetização ganhou impulso a partir de 2003, observa o pesquisador. “Principalmente entre 2004 e 2008, houve uma ampliação da renda, uma maior criação de empregos, com políticas de transferência de renda: num gasto do Bolsa Família de R$ 12 bilhões, quase 90% disso vira alimento. Houve ainda a valorização do salário mínimo, maior estruturação do mercado de trabalho, ampliação do crédito para o consumo, todos elementos importantes para iniciar esse processo de maior intensidade na diferenciação de produtos e preços”, comenta.
Barreira fisiológica
Valter Palmieri lembra que o consumo de alimentos enfrenta uma barreira fisiológica: cada pessoa tem um limite para o quanto de comida deseja, ou é capaz de ingerir. Uma vez atingido esse limite, a indústria não consegue ampliar seus ganhos vendendo mais comida para aquela pessoa: a estratégia passa a ser convencer o consumidor a pagar mais pela mesma quantidade de alimento. Para isso, amplia-se a segmentação do mercado, produzindo ou acirrando diferenciações sociais a partir de inúmeros discursos sobre alimentação.
A gourmetização surge como parte desse processo. O pesquisador nota que o aumento das opções de um mesmo produto nas prateleiras de um supermercado – “encontrei cafés, em embalagens de pó de 500 gramas, de R$ 9 a R$ 230”, exemplifica – não é simbolicamente neutra. “Existe uma hierarquia. Não é apenas mostrar um leque de opções, como se fosse um leque de cores, e cada um escolhe a cor que lhe agrada, livremente. Existe uma produção de signos e significantes por trás das mercadorias, uma espécie de linguagem especifica onde a publicidade tem papel de destaque, existindo uma hierarquia na lógica dessa produção e consumo: quais produtos que são melhores? À noite, na sexta-feira, a pessoa come comida japonesa? Ou janta arroz e feijão? No seu imaginário, não aparecem diferenças no rendimento de cada um, nesses cenários? E não só de rendimento, mas de posição social?”
“É uma lógica da diferenciação social que explica o consumo”, acrescenta. “Há uma identificação, em que certo produto é tido como algo simbolicamente melhor. É a questão de como se posicionar nessa hierarquia social”.
Palmieri nota que mesmo quem busca escapar dessa lógica do marketing industrial, apelando para produtos ditos orgânicos ou artesanais acaba, na verdade, cedendo a ela. “Consumir apenas o açúcar demerara orgânico em sua casa, usá-lo para adoçar o café orgânico, é uma forma de se posicionar, e não apenas com o intuito politico, que faz parte desse discurso, mas vai além, porque marca uma diferenciação social”, aponta. “Porque se você olha para as diferentes cestas de consumo, percebe que alimentos integrais são mais consumidos pelos extratos de maior rendimento. Então, os diversos atributos utilizados para justificar essa diferenciação de preço, essa diferenciação de produto, vão marcar a diferenciação social”.