Estudos que envolveu 38 instituições de todo o mundo – incluindo a Unicamp, a única representante do Brasil – publicado hoje (11) na capa da revista Science, aponta o Leste da Ásia como a provável origem do fungo letal responsável pelo declínio da população de anfíbios no mundo. Segundo os autores do trabalho, o patógeno surgiu no início do século XX, coincidindo com a expansão global do comércio de anfíbios para restaurantes. A pesquisa é mais uma evidência dos efeitos deletérios da introdução descontrolada de espécies que não estão em seu habitat natural. Calcula-se que o fungo tenha causado a extinção de 200 espécies, 15 das quais no Brasil.
A infecção por Batrachochytrium dendrobatidis (Bd) é considerada a pior doença selvagem de todos os tempos. O fungo letal é o causador de uma doença chamada quitridiomicose, que ataca a pele dos anfíbios e acaba interferindo no batimento cardíaco destes animais. A transmissão da doença é feita pela água ou contato direto entre os animais. O fungo está distribuído em todo o mundo, mas até hoje não se sabia a origem deste patógeno.
“Os biólogos sabem, desde os anos 1990, que o Bd está por trás do declínio de muitas espécies de anfíbios, mas até recentemente não tínhamos sido capazes de identificar exatamente de onde veio. Em nosso artigo, resolvemos esse problema e mostramos que a linhagem que causou tal devastação pode ser rastreada até o Leste da Ásia”, afirma Simon O'Hanlon, do Departamento de Epidemiologia de Doenças Infecciosas, da Escola de Saúde Pública, do Imperial College London e primeiro autor do artigo.
O fato de o estudo reunir cientistas de diferentes países possibilitou a análise de amostras do patógeno de todo o mundo para resolver a origem espaço-temporal do fungo. Os cientistas sequenciaram os genomas de 234 amostras de Bd, das quais eles identificaram quatro principais linhagens genéticas do fungo. Um deles foi encontrado apenas na Coreia do Sul, em sapos nativos da região e cujo genoma mais se assemelha ao ancestral de todos os Bd modernos.
“A linhagem virulenta do Bd, que causou declínios por todo planeta, surgiu há cerca de 100 anos. Por conta de diferenças nos métodos de análises moleculares, as estimativas anteriores apontavam números muito discrepantes, que variavam entre 100 e 25 mil anos”, elucida Felipe Toledo, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e autor do estudo. Ao invés de remontar a milhares de anos, como se pensava anteriormente, o alcance da doença se expandiu enormemente entre 50 e 120 anos atrás, coincidindo com a rápida expansão global do comércio intercontinental.
De acordo com os pesquisadores, para além do consumo de carne de rã, o comércio de animais de estimação contribuiu diretamente para disseminar o patógeno em todo o mundo. “O problema tem também contribuição antrópica [atividades humanas]; e continua acontecendo – o que pode ser muito ruim, pois existem diferentes linhagens do fungo, inclusive isto pode implicar no surgimento de linhagens híbridas ainda mais severas”, alerta Toledo.
A introdução de espécies que não são nativas da região são as chamadas de espécies exóticas. Quando proliferam sem controle são consideradas exóticas invasoras e elas representam ameaças para espécies nativas e para o equilíbrio dos ecossistemas. Como é o caso da rã-touro (Lithobates catesbeianus) que ficou amplamente conhecida por ser consumida em restaurantes em todo mundo. A rã-touro está no Brasil desde 1935, quando os primeiros casais foram importados dos Estados Unidos para dar início a criações comerciais destinadas, principalmente, à produção de carne. Entretanto, hoje a rã-touro também está presente fora dos ranários comerciais e em muitos locais do país, alimentando-se de desde pequenos invertebrados até aves, mamíferos e outros anfíbios. A distribuição da espécie no país é grande, especialmente na Mata Atlântica, mas seus efeitos na natureza ainda devem ser mais estudados.
As espécies exóticas invasoras provocam tanto impactos diretos como indiretos sobre espécies nativas. Os impactos diretos ocorrem por meio de competição, predação, ocupação de hábitats, ruptura de interações ecológicas que existiam previamente e que deixam de existir por conta da presença de uma espécie invasora. A transmissão de doenças, com a quitridiomicose, também é uma das consequências diretas das invasoras. Espécies exóticas invasoras também podem alterar a estrutura e o funcionamento de ecossistemas, o que indiretamente pode impedir a permanência de espécies nativas. “Uma vez que se altera o funcionamento do ecossistema por um grupo de espécies invasoras, há o potencial impacto nos serviços providos por este ecossistema para a espécie humana, e logo comprometendo nosso bem-estar” explica Michele Dechoum, pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Os autores do artigo da Science acrescentam que o seus achados fornecem fortes indícios para a proibição do comércio internacional de anfíbios, devido ao alto risco associado à exportação de cepas anteriormente desconhecidas de quitridiomicose para fora dessa região. “Nossa pesquisa não apenas aponta o Leste da Ásia como o ponto zero para esse patógeno mortal, mas sugere que descobrimos apenas a ponta do iceberg da diversidade de quitrídios na Ásia. Portanto, até que o comércio atual de anfíbios infectados seja interrompido, continuaremos colocando em risco nossa insuperável biodiversidade global de anfíbios”, revela Matthew Fisher, da Escola de Saúde Pública, do Imperial College London, outro autor do estudo.
As linhagens de fungos que estão espalhadas na Mata Atlântica estão muito próximas da linhagem ancestral da Coreia do Sul. “Não sabemos se o fungo foi do Brasil para a Ásia, ou da Ásia para o Brasil. Já sabemos que existem híbridos no Brasil, mas com muito poucos dados sobre sua patogenicidade e virulência”, complementa Toledo, que atua no Departamento de Biologia Animal do IB-Unicamp.
O grupo de pesquisa da Unicamp já identificou mais de 200 espécies infectadas no país, mas este número pode ser maior. “Na Mata Atlântica estimo que de 20% a 40% dos indivíduos de todas as espécies podem estar infectadas com o fungo. E neste bioma já catalogamos mais de 600 espécies”, infere Toledo.
Um exemplo triste do efeito fulminante do Bd é a extinção do gênero Atelopus na América do Sul. O gênero é extremamente sensível ao fungo, o que provocou sua extinção na natureza. Hoje só é possível conhecê-lo em zoológicos.
A criação de rãs em cativeiro ocorre no Brasil, Taiwan, China e Tailândia. No Brasil iniciou-se em 1935, com a importação de 300 casais de rãs-touro. Os empreendimentos se instalaram principalmente nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. O principal produto da criação é a carne, que é saudável e rica em proteínas, considerada uma iguaria fina. Em 1988, o país contava com mais de dois mil ranários, a maioria concentrada no Centro-Oeste. Embora não haja outros censos, estima-se que este número não ultrapasse 150 criadouros atualmente.
O criador de rãs precisa ter registro federal (Registro Geral de Atividade Pesqueira), cadastro estadual (Cadastro Ambiental Rural, pois aquicultura também é atividade rural) e a criação deve ser licenciada pelo Ibama. Os Estados têm autonomia para aprovar o licenciamento ambiental.
No Estado de São Paulo, a criação de rãs é regulamentada pelo Decreto N° 62.243, de 2016. O documento dispõe sobre as regras e procedimentos para o licenciamento ambiental da aquicultura, que inclui peixes, camarões, ostras e rãs. Basicamente, quanto maior a área do empreendimento, maior o rigor do licenciamento, especialmente aqueles acima de 1.200 m². Em Santa Catarina, a Resolução Consema nº 98/2017 o licenciamento é obrigatório para ranários acima de 1.000m². Os catarinenses contam com a Resolução Consema nº 08/2012 que Reconhece a Lista Oficial de Espécies Exóticas Invasoras no Estado de Santa Catarina, na qual a rã-touro aparece classificada na categoria cuja soltura é proibida.
“Está sendo elaborada normativa que estabelece medidas de prevenção, contenção e controle da espécie de forma a assegurar que não ocorra escape em qualquer fase do seu desenvolvimento, sendo proposta também a apresentação de plano de contingência pelos produtores para casos de escapes. Propõe-se que seja indicada também a destinação final de animais mortos, visando evitar a contaminação de ambientes naturais por Batrachochytrium dendrobatidis, e um monitoramento contínuo com foco nesta doença,” esclarece Elaine Zuchiwschi, coordenadora do Programa Estadual de Espécies Exóticas Invasoras da Fundação do Meio Ambiente – FATMA do estado de Santa Catarina.
Já no Rio Grande do Sul permite-se que os ranários que já existem continuem em operação, mas proíbem abertura de novos. Os que já existem têm que apresentar medidas de contenção e, caso deixem de criar, que tenham medidas para retirar dos animais.
Para Claudia Maris Ferreira, pesquisadora científica do Instituto de Pesca (APTA/SAA), são necessárias tanto medidas sanitárias para o bem-estar do animal do cativeiro quanto ambientais para a proteção da fauna silvestre de anfíbios. “Não se pode soltar a rã-touro no ambiente. É crime perante o Ibama”. Segundo a especialista em ranicultura, além dos tanques individualizados, devem-se preparar proteções 30 cm para baixo da terra, 70 cm para cima, mais as telas de sombrite e isolamento interno dos tanques. “Não é interessante que as rãs saiam, tampouco que anfíbios nativos entrem, porque o ranário é um lugar que tem água de qualidade, tanques ideais para a reprodução de anfíbios. Então, os silvestres também invadem os ranários e vão desovar lá dentro e vão se alimentar.”
A entrada de animais silvestres também pode acarretar doenças para o cativeiro, ou ainda se a rã-touro estiver doente o silvestre pode levar o Bd para fora. “Esta instrução tanto de manejo diário de condições sanitárias, quanto ambiental, por causa do escape, é passada para todos os ranicultores. Infelizmente o que acontece, às vezes, é que produtores pouco orientados soltam os animais no ambiente”, explica Ferreira. Segundo a pesquisadora, quando há descompasso entre proteção ambiental e produção agrícola, resultando em decretos punitivos, o pequeno produtor e/ou empresário desistem do empreendimento e, eventualmente, acabam adotando medidas que prejudicam o meio ambiente – às vezes, até desconhecendo seus impactos.
Ainda assim, segundo a especialista, a infecção pelo fungo é simples de ser tratada quando identificada precocemente no cativeiro. “O fungo morre com hipoclorito [água sanitária] e com sol. Então, boas práticas de manejo e produtos profiláticos tornam possível o tratamento e erradicação no cativeiro. Mas na natureza não há o que se fazer”, complementa Ferreira.
Felipe Toledo avança, indicando algumas medidas que podem ser revistas no comércio internacional de rãs, como por exemplo, a exportação e a importação de animais vivos. “Temos que fazer isto de maneira mais segura, comercializando apenas a carne de rã congelada, como a Europa já faz. Ou ainda realizar testes diagnósticos nos animais para certificar que não estão contaminados” explica o biólogo. “Devemos parar o alastramento das diferentes linhagens de Bd pelo planeta e maior cuidado deve ser dado às regiões megabiodiversas como o Brasil, número 1 no ranking de espécies de anfíbios no mundo”.
A pesquisa apresentada no artigo foi apoiada com recursos do National Environment Research Council e, no Brasil, pela Fapesp e CNPq. (Paula Drummond de Castro)