A preocupação existiu desde o começo. Desde que o Crispr surgiu, há seis anos, as revistas científicas e órgãos internacionais ponderam: podemos editar o DNA humano? Nós estamos falando de uma molécula que existe há milhares, muitos milhares de anos. Qual seria o limite para a edição genética? É uma questão ética complexa.
Por outro lado, a técnica de edição de DNA é simples e barata. O que ela pode fazer, no entanto, é uma revolução, como expressou a prestigiosa revista científica "Science" em uma de suas capas. Podemos criar bebês resistentes ao HIV, como anunciou o cientista chinês. Podemos editar, na verdade, o material genético de praticamente qualquer ser vivo. As expectativas giram em torno da cura de doenças importantes, como o Alzheimer e o câncer.
Os cientistas aprimoraram a técnica Crispr para o uso prático em 2012, mas ela "bombou" em 2015. Foi usada para alterar o genoma de embriões humanos, criar cães extramusculosos, porcos que não contraem viroses, amendoins antialérgicos e trigo resistente a pragas.
Tudo isso com a ajuda de uma enzima presente no sistema de defesa das bactérias. Os pesquisadores usam a Cas9 junto com um RNA "guia" para "recortar" a parte que é de interesse no DNA.
No meio disso tudo, o Crispr é citado como uma chance para um futuro Nobel. Uma das questões que precisavam ser resolvidas – decisão tomada no ano passado – era a autoria da descoberta: três cientistas, duas mulheres e um homem, levaram o direito à patente para ser decidido na Justiça dos Estados Unidos.
A patente é milionária, avaliada em milhões de dólares. De um lado, duas mulheres frequentemente cotadas para concorrer ao Nobel: a microbióloga Emmanuelle Charpentier, do Instituto de Berlim Max Planck; e a bioquímica Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Do outro, Feng Zhang, do Instituto Broad, um organismo de pesquisa ligado à Universidade Harvard e ao MIT.
Em fevereiro de 2017, Zhang venceu a batalha. Ele ficará com os direitos ao lucro do uso da técnica.
O pesquisador chinês He Jiankui disse que criou os primeiros bebêsgeneticamente editados no mundo. São as meninas gêmeas – Lulu e Nana – nascidas neste mês.
Ainda não há uma confirmação científica do feito de He. Ele não publicou artigos científicos em revistas, nem prestigiadas, nem desconhecidas. Não divulgou o nome dos envolvidos.
Voltamos ao início do texto: podemos editar uma molécula que demorou milhões de anos para chegar onde está?
Independentemente da pesquisa de He, já chegamos muito longe.
Em agosto de 2017, a "Nature" publicou pela primeira vez a modificação de genes defeituosos em embriões humanos para evitar uma condição cardíaca hereditária. A pesquisa gerou embriões saudáveis, que sem edição genética teriam desenvolvido a cardiomiopatia miotrífica – doença que dificulta o bombeamento do sangue pelo coração.
Em abril de 2016, o periódico "Cell Reports" avaliou que a técnica precisava de ajustes para evitar a ação do vírus da Aids, com sua alta capacidade de mutação. Mais de um ano depois, em maio de 2017, a revista "Molecular Therapy" publicou que cientistas da Universidade Temple, na Filadélfia, conseguiram editar o código e evitar que o vírus continuasse a se replicar em animais.
Os chineses injetaram pela primeira vez em seres humanos genes editados com o Crispr em outubro de 2016. Um time da Universidade de Sichuan inseriu as células modificadas em um paciente com um tipo agressivo de câncer de pulmão – uma proteína foi desativada com a ajuda do recorte do DNA, justamente a que é usada para a proliferação do câncer.
Nos Estados Unidos, cientistas criaram órgãos humanos em porcos para a realização de transplantes. Isso ocorre em duas etapas: primeiro, os especialistas removem o gene de um embrião de suíno recém-fertilizado e que levaria ao desenvolvimento do pâncreas. Depois, as células-tronco humanas são injetadas dentro do embrião do animal. Com isso, o órgão humano se desenvolve dentro do porco e depois pode ser retirado para uma possível cirurgia.
Um consenso sobre o uso e uma legislação que implemente um limite internacional, ou pelo menos nos países que mais atuam nas pesquisas: Estados Unidos e China. Assim, os cientistas poderão pesquisar com mais segurança e avançar de forma ética sobre o assunto.
Nos Estados Unidos, a FDA, "Anvisa" do país, acaba barrando o desenvolvimento de algumas pesquisas. Em março deste ano, a agência interrompeu os primeiros testes em humanos com o Crispr.
He saiu dos Estados Unidos porque, justamente, a edição genética não é permitida com aplicação em humanos, exceto pesquisas de laboratório, sem interferência na vida ou perpetuação. A China proíbe a clonagem humana, mas não especificamente a edição de genes.
A preocupação dos órgãos de regulamentação americanos tem fundamento: a "Nature Biotechnology" questionou a precisão do Crispr e mostrou que experimentos de laboratório usando células de camundongo e humanas revelaram que a técnica causou "frequentemente" mutações genéticas "extensas".
De acordo com os pesquisadores, as "mudanças no DNA foram seriamente subestimadas antes".