Nas prisões brasileiras, a morte chega mais rápido por meio de uma tosse do que de um estilete. Em um ambiente caracterizado pela superlotação e estrutura precária de higiene, onde faltam médicos e outros profissionais de saúde, o "massacre silencioso" é comandado não por facções, mas por doenças tratáveis a exemplo de Aids, tuberculose, hanseníase e até mesmo por infecções de pele.
O caso do Rio de Janeiro é típico do que acontece em todo o país quando o tema é saúde nas cadeias: nas 58 unidades penitenciárias do Estado, exatos 517 presos morreram em decorrências de diversas doenças entre 1º de janeiro de 2015 e 1º de agosto deste ano. No mesmo período, 37 detentos foram assassinados em suas celas --um índice 14 vezes menor.
Neste contexto, mais típica ainda foi a morte do alemão Marius Borris Haussmann, 47, dentro da Penitenciária Milton Dias Moreira --em Japeri, cidade da região metropolitana do Rio. Condenado por tráfico de drogas, ele estava preso desde o dia 20 de abril de 2016. Morreu um ano e três meses depois, no último dia 27 de julho, por complicações decorrentes da tuberculose, apurou a reportagem. Ele também era soropositivo.
"Não é preciso que haja uma rebelião como a de Manaus para você ter um massacre silencioso nos presídios", afirma o defensor Marlon Barcellos, coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
"O que a gente intui? A gente está vendo essas mortes acontecendo e 90% é por doença. Tem um caso ali e outro aqui por suicídio. Violência é excepcional", diz o também defensor Ricardo André de Souza, subcoordenador de Defesa Criminal da instituição.
Souza afirma que há registros de problemas de pele que poderiam ser tratados de forma simples e acabaram por evoluir para a morte do preso, por causa de falta de tratamento adequado. Uma médica que atua em prisões do Rio, confirma, sob sigilo, o relato do defensor público.
"O preso que tem escabiose [tipo de sarna] começa a se coçar, o local que ele coça começa a desenvolver um abcesso e, se não receber tratamento adequado com antibióticos, pode haver um desenvolvimento de uma infecção mais grave."
Segundo dados do Ministério da Saúde, obtidos pela reportagem com fontes ligadas ao Depen (Departamento Penitenciário Nacional), "pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose. A taxa de prevalência de HIV/Aids entre a população prisional era de 1,3% em 2014, enquanto entre a população em geral era de 0,4%".
Alguns grupos populacionais possuem maior vulnerabilidade a infecções, devido às condições de saúde e de vida a que são expostos. "A população privada de liberdade está inserida nesse contexto", afirma o Ministério da Saúde, em resposta ao UOL. A pasta afirma conduzir um programa federal para atendimento de saúde prisional (leia resposta abaixo).
Superlotação e estrutura precária favorecem surgimento de doenças nas prisões
Quem visita as cadeias brasileiras sabe que o atendimento prestado é insuficiente.
"Há ausência de tratamento. Dificuldade para tudo. As unidades prisionais, quando oferecem alguma coisa, é um clínico geral, um tratamento paliativo", afirma o padre e enfermeiro Almir José de Ramos, consultor nacional de saúde da Pastoral Carcerária.
Padre Almir visita prisões brasileiras duas vezes por semana. "Nos presídios, na maior parte das vezes, o remédio se resume a calmante e analgésico. Não é um tratamento, é uma forma de amenizar."
Peritos do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), órgão ligado ao Ministério da Justiça, publicaram o resultado de suas inspeções, que revelam diversas violações aos direitos humanos nas cadeias brasileiras quando se trata da saúde dos presos. Dois lugares chamam a atenção: Pará e Pernambuco.
No Pará, os peritos visitaram dois presídios no ano passado e chegaram à seguinte conclusão: "A ausência de projetos de prevenção nas unidades, somada à falta de medicamentos adequados às necessidades dos diversos comprometimentos clínicos, a imposição de convívio com esgoto e, por consequência, de roedores e insetos, de espaços propícios para putrefação de alimentos, transformam ambas as unidades em um lugar medieval, onde a tortura e o tratamento cruel desumano e degradante fazem parte da engrenagem do cárcere".
Ratos chegam a dividir espaços com os presos nas celas paraenses. "O MNPCT, durante sua visita, observou presos sem colchões, dormindo no chão imundo, em cima de fezes e urina de ratos", lê-se no relatório em referente à inspeção feita em meados do ano passado no Presídio Estadual Metropolitano 1, localizado na região metropolitana de Belém. Pelo menos dois presos morreram de leptospirose no Estado do Pará em 2016.
No Complexo do Curado, no Recife, os peritos afirmam que as condições de vida no local "violam diversas prescrições nacionais e Internacionais de direitos humanos".
Os peritos acrescentam que "as péssimas condições infraestruturais, a deficiência de iluminação natural ou artificial, o não acesso à alimentação de qualidade e à água potável, assim como a falta de condições mínimas de limpeza fazem parte do cenário das unidades do complexo".
"O local propicia a disseminação de doenças por suas péssimas condições físicas e por suas cruéis condições de detenção. Por sua vez, as enfermarias das unidades são bastante precárias, sem estrutura física e equipamentos adequados."
O relatório afirma ainda que o complexo é "um palco de maus-tratos e tortura" e que é comum delegar a presos o encaminhamento dos presos doentes para tratamento.
"Causa também preocupação o fato de os presos representantes serem os responsáveis pelo encaminhamento de pessoas adoecidas ao serviço de saúde. Neste contexto, o acesso à saúde pode ocorrer de forma díspar", afirmam os peritos.
Em São Paulo, 443 presos morreram em decorrência de doenças nas unidades penitenciárias do Estado nos anos de 2015 e 2016. A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) não forneceu os números de mortes violentas pedidos pela reportagem.
Nos últimos anos, a Defensoria Pública do Estado ingressou na Justiça com uma série de ações cíveis públicas para que o governo de São Paulo ofereça equipes básicas de saúde --médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais-- nos presídios paulistas, como preveem leis nos âmbitos federal e estadual.
Presídios localizados em cidades como Diadema, Jundiaí e Osasco não possuíam esses profissionais, de acordo com a Defensoria. "Desta forma não é aplicada a medicina preventiva nestas unidades", afirma o defensor Bruno Amabile Bracco, da coordenação do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de SP.
"O Estado enfrenta um problema recorrente que é a baixa procura de candidatos a vagas de médicos nos presídios. Porém, pode-se solucionar essa questão fazendo contratos de emergência com hospitais, associações de médicos ou equipes de saúdes das prefeituras das cidades, onde as prisões estão sediadas, como a lei permite."
Em sua resposta, a Seap afirma que 54 unidades prisionais contam com as equipes básicas de saúde (leia a resposta abaixo).
Entre as ações da defensoria paulista há uma que pede a instalação de aparelhos para aquecimento de água nos dias mais frios do ano "porque os presos com tuberculose tomam banho frio". A ação é de maio de 2013. A Defensoria Pública teve vitória em primeira instância, mas o governo recorreu e hoje o processo está no Tribunal de Justiça do Estado.
O UOL teve acesso a cartas escritas por presos em cadeias paulistas, onde denunciam a falta de atendimento médico e a falta de remédios. Em uma delas, um detento que sofre com hérnia iguino-escrotal conta que não conseguiu se submeter a um procedimento cirúrgico (leia trecho abaixo).
Carta de preso que reclama de atendimento médico em São Paulo
Divulgado pelo Ministério da Justiça em abril de 2016, com informações referentes a dezembro de 2014, o último relatório do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) mostra a disparidade entre mortes por doenças (594) e mortes violentas (159).
Porém, pesquisadores reclamam da falta de dados mais atualizados. "A Seap [Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro] não segue o padrão internacional de classificação de doenças. É uma classificação bastante frágil, faltam muitos dados", afirma a pesquisadora Ana Paula Pellegrino, do Instituto Igarapé, que realizou recente estudo sobre as mortes por doenças no Rio.
"Os dados sobre a saúde da população privada de liberdade no Brasil no geral são insuficientes. Urge melhorar a classificação e tratamento desses dados."
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça informou que a previsão de divulgação do novo Infopen era o final de julho, o que acabou não ocorrendo. O UOL apurou que o governo brasileiro estuda mudanças no censo penitenciário e que é provável que o Infopen não seja mais realizado.
"Além de não zelar pelo bem-estar do preso, o Estado brasileiro omite os dados da população carcerária, o que se torna uma verdadeira caixa-preta à qual ninguém tem acesso", afirma o advogado Marcos Fuchs, vice-presidente da ONG Conectas Direitos Humanos. "A falta de uma base de dados confiáveis dificulta a fiscalização por parte da sociedade civil, dos organismos internacionais. Atrapalha inclusive a aplicação de políticas públicas do próprio Estado."
"Esse chamado massacre silencioso acontece porque o Estado brasileiro pratica uma política de extermínio no sistema prisional", afirma o padre Valdir Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária de São Paulo.
Em nota enviada, o Ministério da Saúde afirma que a rede pública conta com 236 equipes da "Atenção Básica do Sistema Prisional". Essas equipes são divididas em três tipos, a depender dos profissionais que participam. "São médicos, cirurgiões-dentistas, enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos, entre outros." Em 2016, foram realizados 167.459 atendimentos por essas equipes, afirma a pasta.
"Em julho, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, anunciou a habilitação de mais 113 equipes de Saúde Prisional. Com esse incremento, o investimento da pasta para custeio desses serviços chegará a R$ 42,9 milhões por ano", afirma o ministério.
A Seap do Rio de Janeiro afirma, em nota, que as doenças que mais incidem no sistema prisional do Estado são escabiose, tuberculose e hanseníase. "Para conter a proliferação é realizado um inquérito de saúde quando o interno ingressa na unidade prisional. Caso alguma doença seja detectada, a Seap conta com tratamentos especializados."
"Informamos que há um convênio com o Ministério da Saúde para tratamento dessas doenças, que obedece a um padrão nacional. Além disso, mais medicamentos estão sendo adquiridos conforme acordos em audiência com a 1ª Vara de Fazenda Pública, Promotoria e Defensoria Pública", diz a nota.
Já a secretaria de São Paulo afirma, também em nota, que "nenhum preso deixa de receber atendimento médico, seja na própria unidade onde está detido, no hospital próprio da SAP ou por meio do Sistema Único de Saúde".
O comunicado diz também que "São Paulo é o único Estado que possui um Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, em funcionamento no Complexo do Carandiru, que presta atendimento exclusivo a presos".
"Atualmente, 54 presídios disponibilizam atendimento médico graças à pactuação com os municípios --quando o município recebe incentivo financeiro para assumir a Atenção Básica dentro dos ambulatórios de saúde das unidades prisionais. Há fornecimento de água quente em todas as celas das enfermarias para os presos que lá permanecem em decorrência de enfermidades." A SAP afirma realizar ações de combate e controle da tuberculose em presídios paulistas.
Por sua vez, o governo de Pernambuco informou que "reformas foram executadas nas unidades de saúde do Complexo do Curado com garantia de acesso ao atendimento integral à saúde em nível de atenção básica".
Diz a nota: "Os consultórios de fisioterapia, odontologia e enfermagem também foram aperfeiçoados. Houve reforço na distribuição de medicamentos, na qualidade da alimentação e na atualização da situação vacinal dos presos. Cozinhas e padarias das unidades passaram por reformas com melhorias na estrutura física". Informa contratação de profissionais de saúde para reforçar o atendimento médico no complexo.
A Susipe (Superintendência de Administração Penitenciária do Pará) não respondeu às mensagens por e-mail enviadas pela reportagem do UOL, desde quarta-feira (11) até a presente publicação desta reportagem.
Fonte: uol.com.br