Há quase uma década, um dos presentes comprados todos os anos por Lucineide Damasceno, de 50 anos, fica sob a árvore de Natal depois do dia 25 de dezembro. É o de seu filho, Felipe Damasceno, desaparecido em 2008 aos 17 anos.
Desde então, a trajetória do menino assumiu o pretérito imperfeito como tempo verbal oficial. Na vida da mãe que espera, entretanto, resistir é conjugar o tempo presente. “Eu tenho três filhos, não tinha”, corrige Lucineide a quem ousar colocar sua maternidade no passado.
Felipe é um dos 693.076 boletins de ocorrência registrados por desaparecimento no Brasil de 2007 a 2016, segundo dados inéditos compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em estudo feito a pedido do Comitê internacional da Cruz Vermelha. Em média, 190 pessoas desapareceram por dia nos últimos dez anos, oito por hora. É a primeira vez que dados de desaparecimento estão presentes no anuário de violência do Fórum. Só no ano passado, 71.796 desaparecimentos foram registrados.
Em números absolutos, São Paulo lidera as estatísticas, com 242.568 registros de desaparecimentos de 2007 a 2016, seguido por Rio Grande do Sul, com 91.469, e Rio de Janeiro, com 58.365. Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná e Roraima não passaram os dados completos de todos os últimos dez anos.
Se formos levar em conta a taxa, Distrito Federal concentra o maior número de registros: 106 por 100 mil habitantes. E a razão é bastante simples: embora não registre um número maior de desaparecidos do que os outros estados, a unidade da federação tem um banco de informações que interliga os órgãos, como hospitais, asilos, institutos médicos legais, serviços de verificação de óbito, entre outros, considerado por especialistas um ponto-chave para entender e combater o desaparecimento no país.
“As pessoas estão desaparecendo, e não há uma preocupação em cruzar os dados. Uma pessoa registrada como desaparecida pode aparecer em outro boletim de ocorrência como morte decorrente de intervenção policial, mas esse dado não é cruzado e não se chega à conclusão de que ela foi encontrada morta, por exemplo”, diz Olaya Hanashiro, consultora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Ninguém estava olhando para esse fenômeno para além do período da ditadura militar. E o desaparecimento não deixou de ocorrer no cotidiano da população”, completa.
Das 1.195 mortes violentas registradas de 21 a 27 de agosto pelo monitor da violência, projeto do G1 em parceria com o Fórum e com o Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da USP, mais de 150 não têm o nome da vítima. Podem ser pessoas desaparecidas, com familiares à procura.
O Ministério Público, por meio da Promotoria de Direitos Humanos, entrou com uma ação há três meses para obrigar o estado a cumprir uma Lei estadual de 2014 que determina a integração dos órgãos e a criação de um banco de dados de desaparecidos.
Em agosto, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) assinaram um acordo de cooperação técnica para a implantação do Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid). Além de São Paulo e Rio de Janeiro, o Plid existe no Pará, no Amazonas e na Bahia e outros quatros estados manifestaram interesse em aderir ao programa.
Como o desaparecimento não é considerado crime, é feito apenas o boletim de ocorrência e não há investigação até haver a suspeita de um crime --um homicídio ou um sequestro, por exemplo. A lei também obriga que o desaparecimento de crianças e adolescentes até 18 anos seja investigado, bem como o de pessoas com transtorno mental, mas, segundo a promotora Eliana, apenas o desaparecimento de crianças até 12 anos é investigado no país.
“A pessoa precisa fazer o boletim de ocorrência por desaparecimento logo nas primeiras horas que percebeu isso. Precisamos acabar com o mito do registro após 48 horas. A chance de encontrar uma criança logo após o desaparecimento é maior”, diz.
Segundo dados da promotora, o principal perfil da vítima de desaparecimento em São Paulo é: adolescente, negro e de periferia, o que coincide com o perfil da vítima de homicídio.
“A pesquisa [do MP] mostra o desaparecimento com pico aos 15 anos, cedendo aos 28 anos. A estatística está voltada para os adolescentes, mas o estado não quer investir como eles sendo vulneráveis”, diz.
O desaparecimento é considerado multicausal e pode ser:
“Nós temos muitas notícias de casos em que a última visão do desaparecido foi em uma abordagem policial das mais variadas. Nós temos inclusive da Guarda Civil Metropolitana [GCM], porque anda armada, mas foi prioritariamente criada para proteção do patrimônio. Tanto a Polícia Civil, especialmente a PM, supostamente envolvidas em desaparecimentos, há poucos casos com soluções”, diz a promotora.
A história do irmão de Francilene Gomes ajuda a ilustrar tal dado. Paulo Alexandre Gomes desapareceu no dia 16 de maio de 2006, aos 23 anos. O sumiço ocorreu durante os crimes de maio (onda de violência registrada entre 12 e 20 de maio de 2006), em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, após uma abordagem, agressões e detenção por policiais da Rota. “Abriram inquérito, mas nunca vimos um vestígio dele”, diz.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública, por meio de sua assessoria de imprensa, diz que adotou medidas que possibilitaram maior eficiência nas investigações, como a designação de que as ocorrências sejam investigadas pela 4ª Delegacia de Investigações sobre Pessoas Desaparecidas do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa) na capital paulista. A pasta informa ainda que na Grande São Paulo as investigações são realizadas pelos setores de Homicídios das Delegacias Seccionais de Polícia e, no Interior, as apurações são de competência das Delegacias de Investigações Gerais (DIG). (Veja a íntegra da nota abaixo).
Há também casos relacionados com o envolvimento do crime organizado, principalmente pelo tráfico de drogas, afirma a promotora. O tráfico de pessoas é um crime que também está atrelado aos desaparecimentos, principalmente no Nordeste do país e em cidades de fronteira.
O Plid em São Paulo iniciou uma pesquisa para entender as causas dos desaparecimentos na capital paulista e concluiu que, na Zona Sul, a maioria está relacionada a desentendimentos familiares. A Zona Leste registra o maior número de desaparecimentos e por lá as causas estão atreladas à violência urbana.
“Nós temos um número muito maior na região Leste. O atendimento não é humanizado, e a família não se abre no primeiro atendimento ou porque não vai haver investigação. Na Zona Sul, as causas são basicamente ditadas pelo desentendimento familiar, o álcool, as drogas, a vulnerabilidade social, a falta de lazer, etc. Se a pessoa desaparece em bairros centrais como Higienópolis e Moema, ela tem o aparato ao seu favor. E isso é muito grave, porque queremos uma sociedade igual”, diz Eliana.
Lucineide transformou o luto que não pôde viver em luta na busca por seu filho. O dia 3 de novembro se aproxima, e ela crê que seu filho voltará quando se completam nove anos do desaparecimento.
“No dia 3 de novembro de 2008, ele pediu para ir à casa de um colega aqui na Vila Natal [extremo da Zona Sul] e alguns minutos depois, por volta de 21h30, 22h, os dois desapareceram. Estão os dois desaparecidos até hoje”, diz.
Uma testemunha disse que viu Felipe ser abordado pela GCM, mas a polícia nunca investigou essa pista. Lucineide procura por Felipe sozinha, com amigos, e, depois, com as Mães da Sé, movimento que integra pais de desaparecidos.
“Eu busquei em praça, debaixo de viaduto, na Cracolândia. Fiz até moradia na Cracolândia, em IML, em hospital, em tudo que você puder imaginar, em lugar que vende drogas. Por incrível que pareça, tem vezes que o DHPP liga aqui para saber se eu tenho alguma informação. É engraçado. Tenho que ser a mãe, a investigadora, a policial”, diz.
Há cerca de três anos, uma pessoa disse que viu um carroceiro trabalhando na Zona Norte de São Paulo muito parecido com Felipe. Lá se foi Lucineide quase morar na Vila Guilherme por três meses. Mas nada, nem sinal do filho.
O quarto do adolescente está do jeito que ele deixou há oito anos. O filho mais novo dorme na sala. A cama do Felipe segue sendo dele. As roupas são lavadas a cada cinco meses. Os desodorantes e o perfume usados por ele estão no mesmo lugar.
“Enquanto eu estiver viva, eu vou procurar o Felipe. Eu falo sempre que eu sinto que ele está em algum lugar. Falam que é coração de mãe. Existe 50% de chnace de ele estar vivo e 50% de estar morto. Eu não peso nem para um, nem para outro. Eu não consigo imaginar o Felipe morto, não entra na minha mente.” A perda que não tem nome e o luto que não tem fim.